terça-feira, 1 de junho de 2010

MAS A VIDA TINHA QUE SEGUIR EM FRENTE

O que eu gostava nele era aquele romantismo de quem ouvia discos antigos e riscados, músicas de cabaré, de um tempo em que não havíamos transmutado.
Daquele costume de apertar os lábios e sorrir com ironia quando estava ferido de morte e do olhar verde mar perdido num ponto distante quando falava da sua triste infância de abandono e solidão.
Daquele jeito engraçado de bater a carteira de cigarros no dedo indicador, em que fazia um gesto sempre igual, com ar sério de compulsão obssessiva mal controlada.
Daquela calma dissimulada que era desmentida através dos movimentos sempre nervosos, sempre apressados.
Nunca me cansava de observar seus gestos e insanidades pragmáticas na estranha cumplicidade primitiva, que vinha de um outro tempo de nós dois, tipo cordão umbilical.
Com certeza vínhamos nos encontrando e nos perdendo por muitas existências. Ele nem precisava falar, eu adivinhava seus pensamentos. Eu nem precisava falar, ele antecipava os meus.
E aquelas centenas de páginas que escrevia noites e noites, transbordando um amor tão cego, tão absurdo, tão sem medidas?
Ele sempre insistia em ignorar o óbvio, como as marcas e cicatrizes que as diversas mutações imprimem as suas criaturas.
Ele era filho de um outro tempo, tempo que eu não tinha para compartilhar. Ainda assim me fazia sentir perfeita e única, o último amor tatuado no seu coração.
Dizia-se naufragado e ancorado eternamente nesse sentimento em todas as vezes que pedia que eu acreditasse ser possível. Deixava-me constrangida, puta da vida, sem argumentos que pudessem convencê-lo do contrário. Nessas horas o melhor era o silêncio, ficar paralizada para que o meu coração não pulasse
em suas mãos.
Egoísta sedutor! Dono de tão incontestável amor, do qual nem eu - incrédula pós-graduada ousava duvidar.
Quando lhe virei as costas deixei a vida pendurada por um fio invisível.
Fiquei sequestrada sem resgate, enlouquecendo pela vida afora, prisioneira daquele seu nó-de-marinheiro, indestrutível, secreto, jamais desfeito desde o primeiro encontro, nem por decreto!
Ele tinha parentesco com o fogo que consumiu a minha sanidade e por muito tempo fiquei presa nas ondas dos seu pensamento, via satélite lunar.
Mas a vida tinha que seguir em frente...

texto publicado - Direitos Autorais reservados -Liane Flores - 2003  -

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