terça-feira, 1 de junho de 2010

PEDÁGIO RUMO AO TRAVESSEIRO

Engraçado como algumas pessoas cobram uma responsabilidade maior da minha literatura. Exigem de mim um comprometimento mais engajado. Acham desperdício de talento escrever sobre o amor, enquanto o caldo da cultura do nosso país borbulha sobre o fogo da desigualdade social.
Certamente eu poderia escolher estes caminhos tão ricos, assuntos polêmicos a serem debatidos exaustivamente, que já foram por tantos, por tanto tempo, numa época em que quase todos os trens circulam por aí, totalmente fora dos trilhos.
Entretanto prefiro falar do amor, mesmo que utópico me fascina, embala a alma observar os melhores sentimentos humanos, estejam eles dentro ou fora de mim.
Quanto à literatura sempre tive uma grande curiosidade a respeito de cada escritor, sobre a verdadeira interpretação de sua obra.
Lembro com muita frequência dos meus professores, cheios de certeza, sobre o que significava cada parágrafo de um texto ou de um poema. Eles interpretavam com tanta propriedade o que o autor queria dizer, sob a sua ótica pessoal naturalmente, e nos impunham a sua verdade absoluta, engessada.
Hoje quando escrevo fico divagando sobre tudo o que ouvi na escola e quantas notas inadequadas me foram dadas, motivadas por uma convicção subjetiva de um professor/leitor mal avisado.
Quem pode ter certeza sobre o que um autor quer dizer?
Já ouvi dos meus leitores interpretações que me deixaram de boca aberta! Foram argumentações tão absurdamente fantásticas e que nada tinham a ver com o que eu havia sentido ou pensado na hora de produzir.
Mas aí reside o prazer da literatura e de toda a forma de arte, cada um sentir particularmente e trazer a obra para a sua vida pessoal.
Enfim, dizem que se um escritor precisa explicar ao leitor o sentido exato daquilo que escreveu, um dos dois é incompetente. Toda a forma de expressão deve ser totalmente aberta e livre à emoção e intuição de cada observador, assim a corrente da criação vai produzindo novos elos, fortalecendo sejam as idéias, as imagens, os sons. A emoção que causa é tudo.
Deveria existir pena de morte para quem pensa pelos outros, para quem impede o próximo de crescer ou trilhar sua própria caminhada rumo à compreensão, principalmente  no que se refere à emoção, sentimento que invariavelmente induz a um instante belo e único na viagem ao imaginário.
Eu sou frenética com as palavras que transbordam não sei de onde, borbulhando pensamentos que se derramam em verso ou prosa, idependente da minha vontade.
A tinta no papel é o meu próprio sangue derramando...
Muitas vezes o meu cérebro trava lutas impertinentes com o meu corpo, que exaurido decreta estado de sítio, dá o toque de recolher, quase que em calamidade incondicional.
Nessas horas desligo o computador e a contragosto vou me deitar.
Em seguida, no escuro, brota uma idéia sensacional e a luta reinicia. O cérebro que é um general cinco estrelas ordena que o corpo retorne ao trabalho. Este, preguiçoso recusa-se a atender ao comando e cheio de confiança registra que a idéia é tão comum, sendo portanto impossível não lembrar dela com clareza no dia seguinte.
Fico ali, dentro e fora de mim, observando aquela batalha que continua por tempo indeterminado.
O cérebro não apaga a luz da razão, o corpo não apaga com aquela luz intermintente. Se porventura o corpo vence, no outro dia eu o amaldiçôo, pois obviamente a idéia foi suprimida pelo cérebro só de vingança.
Esta é a sina de todos os escritores, penso eu.
Mesmo agora tive que deixar o aconchego macio dos meus lençóis para vir editar este texto. Meu cérebro comandou em ultimato: ou escreve ou não dorme!
Dureza! Não tive outra alternativa senão atendê-lo, mesmo às duas horas da madrugada.
Santo Deus! Eu bem que poderia ter sido brindada com outra habilidade menos cansativa, como correr maratonas no deserto africano ou amestrar elefantes sagrados em Katamandu.
Este levantamento de idéias me deixa quebrada, insone, assim sou plantonista das madrugadas desde que me conheço por gente.
Minhas mãos são atletas dignas de medalha de ouro.
Por tudo isto não acreditem em nada que dizem os pseudo-entendidos em literatura, quando decretarem:
o autor quis dizer...
Na grande maioria das vezes o autor não queria dizer nada, queria  apenas passaporte para o travesseiro e,
para tal, precisou pagar pedágio ao cérebro.
Boa noite, ou será Bom dia?


Liane Flores - texto publicado para Mostra de Arte da Caixa, realizada no Shopping Itaguaçu - 1990

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